sexta-feira, 31 de julho de 2009

Januário pão cacete‏

“Era um mulato alto, magro, risonho e amável. Chamava-se Januário, possuía dotes artísticos incontestáveis e, além de alfaiate, ainda lhe sobrava tempo e boa vontade para ser presidente de um clube de futebol, porta-estandarte de um cordão carnavalesco, baliza e animador principal do Terno de Gavião. E, assim, aquele cidadão se tornava útil, indispensável mesmo, à terra onde viva — Canavieiras, lá no sul do estado da Bahia".



"... Era assim ,nosso herói alegre, resistente, trabalhador. Tinha — como todos que respiram e pensam — defeitos, virtudes, pontos vulneráveis, fraquezas humanas. Na infância, Januário, atraído pelo aroma dos pães colocados nas janelas dos fregueses e, em particular, por aqueles compridos e torrados, conhecidos, lá, por pães-cacete, praticou a leviandade de se apoderar de alguns dos tais, em dias diferentes e pontes diversos, para despistar o fornecedor e os consumidores. Descoberto no exercício desse mister pouco nobolitante, ficou envergonhado, corrigindo-se, ficando-lhe, porém, para o resto de sua vida tão útil e divertida uma alcunha detestável; passou a ser chamado, pela canalha irreverente: Januário Pão Cacete. Quem quisesse ver nosso amigo furioso, grosseiro, estúpido mesmo, chamasse-o pelo odioso apelido .Perdia a linha irrepreensível mantida com elegância, a cortesia natural e palavrões saiam de seus lábios trêmulos, retumbantes, escandalesos, sujíssimos. Era seu ponto fraco, seu "Calcanhar de Aquiles".



Um dia, ,rapazes e moças da cidade encenaram "Os Dois Sargentos"' velho drama sempre aplaudido. Na noite da representação. Januário, emocionado acompanhava o desenrolar do enredo empolgante, as cenas épicas de d’Aubigny aplaudindo, com entusiasmo vibrante, os finais dos atos...



"A primeira peça, uma comédia leve, foi anunciada. Januário, além cie diretor do conjunto, teria o principal papel. Na estreia falada e comentada na Birindiba e na cidade, o barracão arvorado em teatro estava repleto de espectadores ansiosos pela nova revelação da inteligência poliforme do popular e estimado Januário. Impaciente .ouviu a plateia as pancadas regulamentares e o pano subiu vagarosamente, sem o clássico enguiço dos teatros de amadores. A cena representava o interior de casa burguesa; à direita baixa, nosso amigo de vestes caseiras, barbas imensas, óculos, cabelos grisalhos em desalinho matinal, atitude grave de patriarca em férias. Terminado o sussurro das plateias populares nosso estreante iniciou, calmo, o diálogo com uma moça colocacla à sua esquerda;

— Sim, minha filha, quero uma festa bem organizada; não esqueças o presunto, as conservas, o vinho Bordeaux...

— E o pão cacete, gritou um espectador metido a engraçado.



Uma gargalhada pesada, retumbante, cobriu o dito espirituoso, ferindo o coração do pobre intérprete indefeso. Januário, porém, náo perdeu a atitude de centro nobre. Esperou que terminasse o ruído do riso: olhou para o lado de onde partira o insulto e sem alterar continuou:

— Como dizia, não te esqueças do vinho Bordeaux e... o pão cacete (espanto do público), mas um pão cacete bem grande, e não comam todo. Guardem um pedaço para a mãe daquele cavalheiro... e continuou" com terna comiseração: Pobre senhora! Com um filho daquela ordem, deve passar muita fome...



NOTA — Esta crônica foi compilada do livro de J. Duarte "Vultos Sem História", numa retribuição a publicação, no jornal "O Vigia do Vale", de Almenara cidade de Minas Gerais do Vaie do Jequitinhonha, de Coisas Velhas e Novas, "Duarte e o Piano de Dr. Péricles", no dia 15 de Julho último. Duarte faz parte do corpo de redatores de "O Vigia do Vale". — R.E.S.

Rubens E Silva. Jornal da Manhã. Ilhéus/BA 11/08/1978

Um comentário:

João Esteves disse...

Maria Helena, parabéns por este blog cheio de informes biográficos. Foi uma surpresa e também um prazer chegar a ele por acaso, em minhas andanças pela internet.
Várias das pessoas aqui mencionadas, sei de quem se trata. Por exemplo, este Dumas Ramalho Esteves, é irmão de meu pai. Já faleceu, não faz muito tempo, em idade avançada, segundo meu primo Antonio Dumas, filho mais velho dele.
Meu nome, João Batista Esteves Alves, foi certamente homenagem a meu avô paterno, que exerceu a profissão de carpinteiro em Belmonte e arredores. Chegeuei a conhecê-lo, a ele e a suas irmãs Augusta e Amor. Tanto ele quanto elas chegaram a idade bem avançada, também.
Quanto ao Rubens Esteves da Silva, cujo nome é o mesmo deste blog, assim que vi mencionado o bairro de Realengo não tive dúvidas de tratar-de do próprio, senão seria coincidências demais. A rua que foi seu endereço lá, era a Marechal Falcão da Frota, acho que o número era 60, mas sem certeza. Lá estive muitas vezes na infância e adolescência, em visita a meu avô e minhas tias-avós, e ao próprio Rubens.
Meus cumprimentos então a você extensivos a todos os baianos consanguíneos de meu pai, o Darlington, que acredito estar vivo mas de quem não tenho notícias faz bastante tempo.